“O amor no peito pela pátria distante”

Perfil

Paulino de Aguiar Ferrara, 51, é dificilmente o que um observador poderia chamar de um imigrante típico. À primeira vista, Ferrara pareceu-me um brasileiro absolutamente integrado no ambiente urbano do bairro da Liberdade. No fundo, ele é. Ferrara, no entanto, não pode ser considerado um brasileiro nato, já que nasceu na cidade de Porto, em Portugal.

Sua família viveu naquela cidade costeira lusitana desde que ele tem memória. Seus bisavós eram de Porto, seus avós eram de Porto, seus pais se conheceram e se casaram em Porto. Paulino nasceu em 16 de julho de 1957. A vida de sua família resumia-se basicamente ao comércio local, vendendo produtos frescos da agricultura periférica da cidade.

A rotina da família começou a mudar em 1933, quando subiu ao poder o economista António de Oliveira Salazar, futuro ditador de Portugal. Conforme Salazar foi tomando os poderes do governo, a família de Ferrara começou a se sentir pressionada pelas mudanças observadas no ambiente português. Quando as perseguições começaram, seu avô Pedro Ferrara decidiu que era hora de deixar a Europa.

Paulino chegou no Brasil com 8 anos, em 1941. Para ele, chegar ao Brasil lhe proporcionou um sentimento de expectativa que ele voltou a experienciar poucas vezes. Com seu português ainda carregado de sotaque, o garoto se estabeleceu no reduto português da Liberdade.

Ainda menino, cursou ensino fundamental e médio no sistema público da cidade de São Paulo, também na região da Liberdade. Ao terminar os ensinos regulares, Ferrara permaneceu trabalhando junto de sua família no negócio de roupas por alguns poucos anos, até que decidiu cursar direito.

O garoto conseguiu ingressar no curso da Universidade de São Paulo. Depois de gastar seis longos anos estudando, nos quais ele diz ter se forçado bastante, Ferrara finalmente se tornou bacharel em direito, e desde então exerce a função. Ele diz gostar do que faz, apesar de todo o aborrecimento burocrático que alguns de seus clientes o trazem.

Em 1959, Paulino conheceu sua futura esposa durante uma visita a um de seus clientes. Enquanto ele esperava para se atendido, uma mulher bem vestida entrou a sala de espera onde ele estava e o ordenou que entrasse. Essa secretária aparentemente distante seria a mulher com a qual o imigrante casaria dois anos mais tarde. Ferrara teve com ela dois filhos, chamados Pedro (em homenagem ao avô) e Mateus.

Hoje, mal se pode dizer que ele é português. Quando o vi pela primeira vez, gritando para apoiar a seleção de Portugal enquanto esta jogava contra a Suiça no telão da Casa de Portugal, confesso que o homem me pareceu mais alguém que havia bebido demais. Não fosse pelo fato de ele ter me puxado para torcer com ele, eu jamais saberia que ele é português.

Questionado sobre o que diferenciava os portugueses dos brasileiros no nosso país, ele foi curto e enfático em sua resposta: as pessoas que amamos definem de que pátria somos. Independente dos costumes, o que faz Ferrara se sentir português, fora as viagens anuais que faz para aquele país, é a forte ligação emocional que ele mantém pelos parentes e amigos em Portugal.

“Ser português no Brasil é nutrir o amor no peito pela pátria distante”, ele me disse em um de seus momentos mais alcoólicos. Apesar do tom arrastado com que falou isso, a frase resume bem, mais do que o que é ser português, o que é ser um imigrante.

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Arte que é para todos

Não há muito que possa despertar o tédio em uma pessoa que se aventure pelo Centro Cultural São Paulo. Quem sai pelo metrô Vergueiro se depara com uma surpresa já no corredor que leva à portaria: depois de subir por uma grande rampa de pedra, com a Avenida 23 de Maio de um lado e um pequeno jardim do outro, o visitante vai conseguir ver não só o saguão do Centro, mas também um teatro no andar de baixo, as bilheterias, os escritórios da administração, um espaço para lanches, uma praça, um jardim, uma biblioteca e um atelier. Tudo isso sem dar mais que cinco passos de um lado para o outro. O espaço, somente com paredes de vidro e cheio de aberturas para os andares de baixo, corre de longe para os olhos, e é possível ver até mesmo o espaço de recreação no outro fim do edifício de 300 mil metros quadrados.

Cada espaço guarda uma surpresa na arquitetura: quem entrar pelo atelier, por exemplo, verá que ele não é mais do que quatro grandes corredores de concreto fixados no alto de uma grande biblioteca, cada um em uma parede, ligados ao andar de baixo por corredores inclinados que se cruzam e contorcem no meio do caminho. O jardim, por sua vez, pode dar direto em um grande fosso com um teatro no fundo ou em um mirador no telhado, depois de uma escada espiral. No subsolo, uma série de anfiteatros se conecta com corredores, iluminados por pequenas lâmpadas olho-de-gato. Seguindo para a biblioteca, pode-se encontrar o improvável: um pequeno palco com parede de vidro no meio do caminho.

É assim que o Centro Cultural segue seu dia-a-dia dos eventos: misturando os espaços, levando o público de um lugar para o outro sem que ele perceba e apresentando artes de todos os tipos, origens e naturezas. A coisa mais comum por ali é a pessoa parar para ver e ouvir algo que nem mesmo sabia que estava ali, mas que conheceu enquanto ia para outro lado.

A arquitetura incomum do centro foi alvo de muita discussão no período de construção, logo no início dos anos 80. Durante uma entrevista feita pela própria administração do Centro com o arquiteto Luis Telles, ele explicou como se sentia quando apresentou o projeto final: “Ficávamos de prontidão para ver com o que iam implicar. Não que fôssemos subversivos, os outros é que eram retrógrados”. Na época, a construção complicada do edifício, que envolvia concreto, aço, vidro, acrílico e até mesmo tecido, foi entendida como uma grande ostentação por alguns setores da mídia. O que era para ser uma mera biblioteca de repente se tornara um projeto monumental.

Apesar de toda a crítica, a parceria de Telles com o colega de profissão Eurico Prado Lopes acabou sendo aprovada pelo então prefeito Reynaldo de Barros. Assim, desde 1982, este vendo sendo o palco das mais variadas apresentações, que abrangem desde uma gibiteca até complicadíssimas seções de psicodrama.

“Há uma preocupação em mostrar coisas que as pessoas normalmente não veriam em outros lugares por aqui”, explicou a pianista Eliana Monteiro da Silva, que já fez diversos recitais no Centro. Ela, como muitos outros artistas que aparecem por ali, defende que o Centro deve ser um local em que o público, desde o mais carente de informação até o mais erudito, consiga conhecer novas obras.

Curiosamente, durante seus espetáculos para o Centro, há momentos em que Eliana pára sua música para explicar como ela foi escrita, porque ela apareceu ou, quem sabe, até mesmo uma fofoca sobre a vida particular da compositora Clara Schumann. “Eles adoram. O público que vem aqui já está acostumado com este tipo de abordagem, com essa preocupação em explicar em que contexto a obra foi feita.”

Saindo dos anfiteatros, subindo as escadas e seguindo para a frente do Centro, chega-se à curadoria. É ali, naquele espaço restrito ao público, mas que pode ser perfeitamente observado por um dos muitos fossos na borda dos corredores, que este tipo de atitude é pensada. O curador de música Francisco Coelho, responsável pela programação de música clássica, defende fervorosamente a filosofia do Centro: “A gente não costuma fazer exigências para os artistas se apresentarem por aqui, tanto na área de música clássica quanto qualquer outra. O que a gente procura é revelar novos talentos e trazer artistas consagrados para cá”. Juliano Gentile, também curador, prefere defender outro fator: “Este é um espaço público, nós não temos essa preocupação com a renda. A nossa preocupação é de, cada vez mais, aumentar o público que assiste os espetáculos, dar valor a essas coisas, que são de interesse artístico mas que não tem espaço.”

Uma filosofia aberta e um espaço tão amplo como o do Centro Cultural São Paulo são dois dos melhores ingredientes para o inesperado. Quem se propuser a visitá-lo de vez em quando verá dias em que aparece por lá uma peça shakespeariana. Nas quintas-feiras, a chance maior é de que encontrem por lá uma orquestra de percussão, batendo com vontade em tambores, pratos e pedais para um público bem diferente do primeiro. Às vezes, filas imensas aparecem, avançam pelo saguão e vão embora pela rampa de entrada: é um show de música popular brasileira que está para começar por ali.

Seja erudito, rebelde ou popular, o fato é que o Centro é um lugar que não escolhe seu público. É o público que escolhe o Centro. No dia da inauguração, há mais de duas décadas, o então secretário da cultura Mário Chamie dizia o que queria: “Um espaço para toda essa igualdade cultural brasileira, que é feita justamente das diferenças”. E parece que acertou em cheio.

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Onde quem faz frequenta

A história da HQ Mix, a livraria que virou ponto de encontro de artistas

Ao primeiro passo, um som anuncia a entrada do cliente. Camisetas coloridas desarrumadas em cabides desordenados, pufes laranjas e roxos espalhados pelo chão, esculturas de barro e de porcelana, bonequinhos de herois apoiados sobre livros dos mais variados tamanhos e temas. Esta é a HQ Mix, livraria especializada em quadrinhos que há mais de dois anos é ponto de referência para artistas, jovens, adultos e curiosos.

Localizado no coração da Praça Roosevelt, quem vê o pequeno espaço, pouco maior que uma sala de escritório, mal sabe o tamanho da história que se espreme entre os livros. A trajetória do lugar se confunde com a vida de seu fundador, Gualberto Costa, que afirma que a loja só existe até hoje graças aos laços de amizade que foram sendo construídos ao longo do tempo.

Profissão: Gualberto Costa

Formado em arquitetura no Mackenzie, hoje Gualberto se define como desenhista e comerciante. Sua relação com os quadrinhos começou enquanto estudava para o vestibular em um cursinho, durante as “aulas monótonas feito monólogos”, como afirma Gual. Aos poucos, começou a se dedicar aos quadrinhos e nessa época ganhou o seu primeiro concurso de desenhos. Estimulado por Luciano Ramos, seu professor e também jurado do concurso, Gual começou a se interessar cada vez mais pela área das ilustrações.

Após algumas experiências como desenhista, surgiu o convite para a participação em um quadro no TV Mix, programa da TV Gazeta que entrou no ar em 1987. Gualberto Costa e seu amigo, o também quadrinhista José Alberto Lovetro (JAL), participavam comentando a respeito do mundo dos quadrinhos. Sobre essa experiência, Gualberto afirma: “A partir de então começamos a criar um público. Até o momento não existia internet, por isso logo que terminava o programa as pessoas ligavam para fazer perguntas ou mandavam cartas. Havia também os comentários que recebíamos na rua. A ligação com o espectador era muito boa e resolvemos fazer algo que nos juntasse ainda mais ao público, e então surge o troféu HQ Mix”.

O troféu HQ Mix, considerado o Oscar dos quadrinhos brasileiros, foi criado então em 1988 também pela dupla Gual e Jal. A proposta era unir os quadrinhos a seu público, consolidado a partir do quadro no TV Mix. A votação era aberta aos interessados por esta área e as urnas ficavam na sede da TV Gazeta, localizada na Av. Paulista. A premiação homenageava roteiristas, caricaturistas, cartunistas, além de outras categorias.

Embora o quadro na TV Mix tenha terminado no ano seguinte, o troféu continuou a ser entregue e Gualberto continuou construindo novos planos em sua história em quadrinhos.

“A Menor Livraria do Mundo”

Já com um público formado, Gualberto começou a sentir a necessidade de reunir todo o material que tinha em mãos e começou a sonhar com a construção de uma livraria no futuro. “O Walter Mancini perguntou o que eu tinha de projeto de vida, aí eu falei da livraria. Ele brigou comigo, porque não se faz projeto para quando se ficar velho. Eu havia ajudado na decoração de um dos restaurantes dele, o Jeremias, o Bar. E então ele me ofereceu o espaço no local que passou a se chamar “A Menor Livraria do Mundo”.

O espaço no Jeremias, O Bar tinha apenas uma prateleira e, após o cliente escolher a comida e o vinho, era oferecido um cardápio de livros com cerca de 300 exemplares. A maneira criativa de exibir as publicações foi um grande sucesso, e logo a pequena livraria começou a realizar também festas de lançamento e a reunir um público mais alternativo para o restaurante. Entretanto, A Menor Livraria do Mundo começou a ficar pequena demais, principalmente para aqueles que gostavam de quadrinhos e não se importavam com o apelo gastronômico: “Quando estava no Jeremias, o Bar, surgiu a vontade de criar uma livraria, um espaço para reunir o pessoal, pois eu sabia que eles iriam. Foi uma grande brincadeira, mas eu queria ter uma livraria mesmo.” Gual começou então a procurar um novo espaço, perto da rua Avanhandava, que conseguisse manter a alma da Menor Livraria do Mundo, mas que também oferecesse um espaço independente para reunir os mais diversos artistas.

A HQ Mix na Praça Roosevelt

A nova sede da Menor Livraria do Mundo, agora com o nome de HQ Mix, foi encontrada por Gual na praça Roosevelt, a uma quadra do Jeremias, o Bar.

Ao mudar para a Praça Roosevelt, a HQ Mix passou a conviver não só com um público voltado aos quadrinhos, mas também com os mais diversos artistas, boêmios e principalmente, as pessoas ligadas ao teatro. Logo nos primeiros dias, o público insone começou a encher a loja mais que os pedestres diurnos, mudando algumas idéias de Gualberto: “Eu não tinha ideia de abrir uma livraria e ela se tornar boêmia. A intenção era trabalhar de dia e à noite eu iria para casa, ler, descansar, ver a lição dos meus filhos. Mas acontece que nós viemos para um local onde de manhã e à tarde eu só fico dando informações sobre, por exemplo, onde fica a rua Augusta. Então abrimos às três da tarde, por causa da relação com as editoras, mas é à noite que tudo acontece”.

O próprio Gualberto assume que, ao mudar de endereço, a livraria conseguiu não só aumentar o seu acervo, mas também estabelecer um espaço para reunir todos os amigos que conheceu durante a vida “A área de quadrinhos é quase uma missão para mim. Eu não ganho muito dinheiro com isso, mas eu ganho muitos amigos. Quando abri a livraria na praça, tudo mundo veio pra cá e então acabou se tornando um ponto de desenhistas.”

A jornalista Lídia Basoli, que mora em Marília, é um exemplo deste público fiel. Lívia afirma que visita a livraria sempre que vem a São Paulo, não só para encontrar os amigos, mas também pelas parcerias que realiza aqui: “A gente faz essa revista Café Espacial, e muita gente que trabalha na revista é colaborador ou também frequenta aqui, porque são nossos amigos”. Lívia ressalta ainda que as atrações que a própria Praça Roosevelt oferece é um outro fator que a incentiva ainda mais a frequentar o local pois, segundo ela, este contato com a arte é importante não só para quem trabalha com a área de cultura, mas para o enriquecimento pessoal.

Outro fã da HQ Mix como espaço cultural é o ilustrador Lese Pierre. Ele afirma que é um admirador da livraria pois encontra não só publicações ligadas aos quadrinhos, mas também uma variedade de livros que podem lhe trazer inspiração. “Toda vez que eu venho no evento da HQmix eu conheço alguém. Então eu acho que hoje em dia eu já conheço tudo mundo, é quase um núcleo.”, afirma Pierre.

Para Gualberto, essa troca de experiência é um dos maiores diferenciais de seu estabelecimento: “Quem chegar aqui provavelmente vai encontrar um desenhista batendo papo, e essa troca de informações entre as gerações é bem legal. Você encontra desde o pessoal da velha guarda até os jovens que estão começando, fazendo os quadrinhos independentes”. Gualberto acrescenta ainda que a integração entre o público e o artista é natural: “A gente trata o artista internacional, às vezes lança livros aqui, do mesmo jeito que o menino de 15 anos, que está começando e tendo a sua primeira experiência. Acho que este é o segredo também, de ser o espaço bem democrático, onde todos se sentem bem”.

Segundo o ilustrador Lese Pierre, essa dinâmica é que faz com que ele se aproxime cada vez mais da livraria: “Eu acabei criando um vínculo com a HQmix de tanto participar, frequentar, o que acabou influenciando o meu trabalho”, afirma. E, entre livros, conversas e eventos é que a HQ Mix vai, ao longo do tempo, se consolidando como um espaço que merece ser visitado e reconhecido pelo público em geral.

O futuro

Mas as ideias de Gualberto não pararam com a criação do troféu e a ampliação da livraria e o Projeto “Teishouku Preto” é um exemplo.  Trata-se de nada mais que uma compilação de quadrinhos na qual cada artista escreve sua parte de uma história, e depois outro desenhista continuará a mesma.

O “Teishouku Preto” começou na Virada Cultural de 2006 e continua percorrendo estados, garimpando desenhistas locais e colecionando estilos a cada traçado. Já participaram do projeto mais de 360 artistas, entre eles Jaguar, Angeli, Laerte e outros nomes consagrados dos quadrinhos. O intuito do HQ Mix é reunir as mais variadas gerações de artistas em uma única obra.

Gualberto e sua esposa e sócia, Dani Batista, agora planejam modernizar o empreendimento e multiplicar o ponto de encontro, mas sem perder a característica fundamental do lugar: “Não queremos ser uma grande empresa, queremos ser uma pequena empresa, mas fazer um bom negócio. Queremos uma livraria com identidade e em que as pessoas possam interagir”, traceja para o futuro o engenhoso Gualberto.

*Texto produzido por Celeste Garcia, Fernanda Alcântara e Luciana Reis

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Quando as luzes se apagam

A história do CineArte – um dos corações do Paissandu
As luzes estavam apagadas. Não havia o que esconder e nem havia forma de ocultar. Tudo o que era ilícito transbordava naquela enorme sala. Sob um piso levemente inclinado, quase não havia como tropeçar nos poucos degraus que descemos. As cadeiras eram de madeira, antigas, estofadas em couro vermelho, muitas delas estavam quebradas. Havia pequenas luzes vermelhas iluminando o chão e mesmo a placa com os dizeres “é proibido fumar” não amenizava o forte odor de nicotina no cinema.
Mulher é um ser raro naquele ambiente. A primeira que encontramos foi a bilheteira do cinema: “Vocês cinco?!”, perguntou ela admirada com o bando de estudantes interessados em investir no cinemão.
Ao entrarmos, um homem negro vestido de preto, tão surpreso quanto a mulher do guichê, mostrou-se logo prestativo: “se alguém mexer com vocês, me chamem que eu resolvo a situação rapidinho”. Seu gesto até poderia demonstrar atenção conosco, mas era visível que ele estava preocupado mesmo em evitar qualquer situação que pudesse levar ao envolvimento da polícia.

Sentadas, quietas, atentas. Ouvimos, além dos gemidos dos atores, o arfar discreto e constante de alguns espectadores. A maioria do público é composta por homens entre seus 40 e 50 anos, além de michês. Um deles, com um leque verde-escuro nas mãos, balançava graciosamente o adereço de forma convidativa.

Alguns dos espectadores assistiam de pé com as mãos escondidas no casaco, viam a cena, saíam, voltavam. Outros ficavam sentados, com a cabeça encostada e as pernas abertas, qualquer posição era válida desde facilitasse o movimento dos braços. Ninguém trocava uma palavra, mas língua dos olhos era a que mais fluía. Uma olhadela cruzada e mais demorada parecia ser o convite mútuo e mudo para “dialogarem” a sós.
O recinto tranpirava apreensão e hostilidade, parecia que temiam serem pegos com a mão na cumbuca.
Quando nos sentamos próximas ao corredor, um dos espectadores se aproximou de nós e murmurou um “olá” sedutor; aparentava ser alto e corpulento, tinha um ar intimidador que dava medo. Logo após a monossilábica frase, ele seguiu em frente e sentou-se atrás de nós: pernas abertas, corpo esparramado pela cadeira, um olhar focado que parecia estar em tudo, menos na tela.
Após o incidente, decidimos que o melhor era visitarmos outros ambientes. As últimas mulheres que vimos no local foram duas velhinhas; elas conversavam animadamente na segunda fileira da sala e o que mais impressionava não eram suas idades (por volta de 60 ou 65 anos), mas sim a desenvoltura que a conversa fluía, como se os gemidos do filme fossem meros ruídos intrusos.

Ao sair da sala, pudemos ver dois banheiros: um quebrado, outro aberto, ambos masculinos. As portas de cada boxe eram de madeira avermelhada e muito pequenas, qualquer movimento privado ali poderia ser publicamente visto. Não havia tampa nos vasos, mas em compensação, bolor e ferrugem eram presença intensa em cada sanitário. Com registros de descarga carcomidos pela idade e gotejando água, a única pia onde era possível lavar as mãos estava imunda. Sobre os azulejos brancos e (nem todos bem colados), estava um mictório grande de ferro, além de anúncios de michê espalhados em todo lugar. E, bem no meio do teto, uma breve frase conseguiu condensar bem toda a aura do local com meras três palavras: quero sua cueca.

Conhecendo os fundos, entramos em um corredor estreito que dava para uma ante-sala diferente. Nela, havia várias cabines nas quais seu interior podia ser visto pelas pequenas janelas ao lado de cada porta. Cada cabine apresentava um quarto com paredes e teto pretos, a iluminação era amarela e fraca, uma fila de homens se endireitava na ante-sala aguardando sua vez. Por dentro, era possível ver dois homens em cada cômodo, mas apesar da discreta movimentação, dava para perceber que algo mais acontecia ali.

Quem vê hoje o CineArt Palácio, não imagina seu grandioso passado. A construção de paredes em formato de parábola, piso e forro estrategicamente calculados permitiam a melhor disposição do som: este foi o primeiro cinema construido segundo as normas da arquitetura moderna por Rino Lévi, um dos maiores ícones da arquitetura brasileira.

Inaugurado em 1936, o antigo Ufa-Palácio havia nascido para ser majestoso: localizado em uma das vias mais atribuladas de São Paulo — a Avenida São João—, o cinema era caracterizado por um público maciço que ocupava as mais de 3119 poltronas.
Para se ter uma ideia, uma pesquisa feita em 1955 sobre os cinemas da cidade, constatou que o número de ingressos vendidos nas bilheterias era quase 20 vezes maior do que a população total da cidade. Ou seja, era provável que paulistano encarasse o escurinho do cinema, em média, mais de 20 vezes por ano.
A partir de novembro de 1939 o cinema recebe novo batismo passando a se chamar Art Palácio, inspirado em uma antiga distribuidora européia denominada Art-Filmes.
Com o declínio do mercado dos filmes europeus, o cinema especializa-se em filmes populares e depois eróticos, e assim como a maioria dos cinemas da época, mantém sua programação vinculada a esse segmento, com 10 filmes inéditos por apenas 7 reais.

Hoje, o CineArt Palácio parece estar em seu ponto máximo de decadência. Ao entrarmos, sentimos um ambiente pesado, formado por um público que não parece satisfeito nem consigo mesmo, que se despoja de suas máscaras sociais e que tenta descarregar suas angústias da forma mais animalesca que o homem pode encontrar.

*Texto de Celeste Garcia, colaboradora do SempreSP

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O verde da Zona Leste

O Parque do Carmo, o maior parque da cidade de São Paulo e um dos maiores da região metropolitana, é até hoje ignorado por muitos paulistanos que desconhecem um universo paralelo chamado Zona Leste. No meu caso, que moro a poucas quadras do lugar (aproximadamente 20 minutos a pé), ir ao Parque do Carmo sempre foi uma obrigação moral quando criança. Afinal, que combinação poderia ser mais perfeita do que balanços, gangorras, trilhas e cachorro-quente?

Vista para o lago, aonde nadam cisnes e patos

A história da região se funde com a do parque, que originalmente  foi uma fazenda do século XIX. Hoje, o bosque conta com aproximadamente 6 mil árvores, e além de estacionamento, anfiteatro natural, aparelhos de ginástica (barras), campos de futebol, ciclovia, pista para correr, playgrounds, quiosques e churrasqueiras.

Para os amantes da natureza, o parque oferece ainda contato com a rica fauna da Mata Atlântica, entre mergulhões, pica-paus, andorinhas e sabiás, além de mamíferos como gambás, preguiça-de-três-dedos, macacos e veados-catingueiros. Por outro lado, a mata ciliar, eucaliptal e brejos são parte da flora do Parque do Carmo, que apresenta ainda um cafezal, um pomar e o famoso bosque de cerejeiras, celebrado até hoje pela comunidade nipônica que vive na região de Itaquera.

Vista das Cerejeiras, no Parque do Carmo - Zona Leste

Na tradicional Festa das Cerejeiras, as pessoas praticam um ritual conhecido como “hanami”, que implica em sentar sob as cerejeiras e contemplá-las durante um bom período. O evento é realizado através da Federação de Sakura e Ipê do Brasil, e em agosto acontecerá a 32ª edição da festa. Neste último sábado (08/05), o Parque do Carmo recebeu 60 cerejeiras, resultando em um total de 800 novas árvores plantadas desde abril. O Parque do Carmo possui hoje mais de 1.500 exemplares das especies yukiwari, himalaia e okinawa.

Contudo, quem espera do parque uma estrutura semelhante a do Ibirapuera pode se decepcionar. Seja por sua imensa extensão ou pela má administração, o fato é que o parque hoje tem muitos brinquedos quebrados, a grama não é muito bem cuidada e o sua ampla áreas fechadas e inexploradas é um perigo para quem gosta de percorrer trilhas. Mas não se assuste, pois o Parque do Carmo ainda é um dos mais incríveis da cidade, não só por suas atrações multiculturais, mas também para você, paulistano, que deseja apenas respirar um pouquinho de ar fresco nesta imensa metrópole. Já para mim, o parque sempre será o local aonde eu posso encontrar a menina-moleca que se perdeu em trabalhos e tarefas.

O Parque do Carmo está localizado na Avenida Afonso de Sampaio e Souza, 951.

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